Sunday, March 18, 2007

Janela da alma

O filme, ao mostrar dezenove pessoas com diferentes graus de deficiência visual: da miopia discreta à cegueira total, narrando como se vêem, como vêem os outros e como percebem o mundo, nos faz parar um pouco para pensar que é possível realmente entender o mundo à sua volta não apenas a partir dos olhos, mas sim através das diversas janelas do nosso corpo. Nos falam ainda de seus dramas, de suas vidas e de como a visão se encaixa nessas histórias, de como ela é importante na inclusão pessoal no mundo e de como acaba moldando esta visão.
– Hoje estamos vivendo de fato na Caverna de Platão. Pessoas olhando
em frente, vendo sombras, e acreditando que estão vendo a realidade...
Perdidos de nós próprios e na relação com o mundo, não seremos nada.
(Saramago)
No depoimento do escritor português, encontramos um elo de ligação entre a analise platônica e de sua dimensão epistemológica.
Se enveredarmos pelo fato de que o mundo táctil e sensível (mundo dos fenômenos) é marcado pela multiplicidade, pelo movimento e que este por sua vez tem um caráter ilusório, uma citação do filme elucidaria muito bem a intertextualidade estabelecida por Saramago: “vemos coisas demais, por isso nada vemos ou temos”, como proclama o cineasta Win Wenders, admitindo que nosso mundo encontra-se saturado de imagens prontas e acabadas diante de nossos olhos, sem precisarmos fazer nenhum esforço. Por isso, não buscamos nem criamos nada, a fim de enriquecer a nossa vida.
Uma lição importante que podemos tirar desse filme é que a visão é antes de tudo uma questão cultural, sendo influenciada mais pelo mundo que nos cerca do que por dados ou defeitos naturais. Vemos o que nos é imposto, nos é dado (talvez remetendo mais uma vez a alegoria da caverna). Desse modo passamos a ter aquilo como verdade absoluta (amathía) e a partir daí nada mais nos incomoda, fato bastante preocupante, pois certamente não nos levará à descoberta do conhecimento. Mas num contraponto a esta questão temos o relato do músico Hermeto Paschoal o qual afirma que “o mundo está cheio de coisas horríveis para ver” o que o faz desejoso de estar cego temporariamente, porque o sentido atrapalha “a visão certa”, fazendo-nos parar e refletir sobre o significado de ver ou não ver no mundo contemporâneo, repleto de imagens de todos os tipos.
Talvez mais uma vez expliquemos essa controvérsia com mais uma citação de Saramago: “A realidade não existe, cada experiência de olhar é um limite”, um fino limite de toda essa capciosa teia de informação que por vezes nos leva a optar pelo sensível à idéia do mundo inteligível. Nossa visão alimenta-se de experimentações, e experimentações essas muito curiosas por parte dos entrevistados, uma vez que as limitações visuais acabaram por criar um tipo de visão que muito se aproximaria da idéia jungiana de percepção imaginária da realidade. Porém o uso da palavra realidade soa um pouco controverso, uma vez que a explicação do universalismo da razão não nos permitiria imaginar realidades individuais, mesmo entendendo as limitações de outrem. Não há a possibilidade da dualidade de visão. Daí recaímos na velha armadilha platônica que discorre acerca da dificuldade de separar aparência de realidade, a imagem do seu original. Mas será que tomamos o devido cuidado com a natureza desta dificuldade?
– Descobri com óculos que as árvores eram múltiplas e cheias de folhas e
não uma massa.
(Antonio Cícero)
Não seria paradoxal imaginar que houve a possibilidade da dicotomia de imagens representando o mesmo objeto? Se estamos tão certos de que a visão se origina nas coisas como explicar as duas árvores vistas por Antônio. Ainda que Platão defenda que a idéia de algo deve ser uma, imutável e verdadeira, esta mesma imagem pode, ao sair de sua concepção original assumir uma concepção artística. Eis talvez o por que da frase do cineasta Walter Lima Jr.: “Comecei a sentir problema de visão no cinema, não na realidade.”
Um ponto que me chamou bastante atenção ao longo do documentário foi o depoimento de Win Wenders, que com sua visão particular a respeito do olhar, aborda a relação entre a seleção de imagens e seu enquadramento pela retina, enquadramento este que é dado pelo que nos é imposto e pelos nossos limites ao nos depararmos com a imensidão das coisas que o mundo nos oferece. Wenders relata ainda que ao experimentar pela primeira vez lentes de contato, sentiu-se desconfortável, pois percebeu que precisava do enquadramento proporcionado pela armação dos óculos. Desse modo, Wenders, estaria nos sugerindo que não existe imagem sem a necessidade de formatação, podendo ser adquirida a partir da re-invenção desse enquadramento, que alcançamos ao fazer uso das diversas janelas que possuímos, ou seja, através do nosso corpo, dos nossos sentidos.
Outro ponto alto do filme foi um recorte urbano feito com o vereador belo horizontino Arnaldo Godoy, que impressionou muito pela exatidão de seu posicionamento geográfico, e percepção dos espaços sendo absolutamente cego. Sua conversão do olhar perturba nossa geografia ingênua e nossa percepção marcada por traços comuns. Ver é recriar sensações a partir de vivências possíveis, estimular em si uma individualidade aberta à identificação alheia (teoria da reminiscência), ou seja, conhecer é lembrar..
– Sei o caminho porque faço o mapa na cabeça, me ligo em outros
referenciais, tenho desenhos na idéia. Eu sonho com imagens.
(Arnaldo Godoy)
Talvez esse fato marcante possa explicar o conceito de Paidéia, que carrega consigo o pressuposto de que não há aumento de bagagem de conhecimento, mas sim o saber-se orientar diferentemente no pensamento.
A emoção compõe com o olho da razão um acorde peculiar, de timbre inaudível. É possível ser cego e sonhar com imagens. Fotografar, enxergar, compor. Amar. Filmar. Olhar através de uma recém-ou-já-construída janela da alma. E outra. Mais outra. Outra. Que aponta para o que eu não vi, para o que eu não sei. Abri-la até o infinito. Até o presente. Captar a alma.
– O olhar na janela é outro olho na janela e outro olho na janela até o
infinito talvez nunca seja na verdade a própria alma...
(Antonio Cícero)
Enfim, ao fim dessa análise descobri que o compromisso deste filme é de fato com o tema: “aquilo que está para além do visível; o que vê alguém ainda quando não pode enxergar”.

No comments: